A desconexão entre humanidade e natureza não é apenas um fenômeno observável nas paisagens urbanas ou no tempo de tela excessivo. Ela se manifesta de forma ainda mais profunda e simbólica: estamos literalmente perdendo as palavras que usamos para descrever o mundo natural. Um estudo recente publicado no periódico científico Earth revelou que o uso de termos relacionados à natureza — como rio, prado, musgo, galho, bico e costa — caiu aproximadamente 60% em livros publicados entre 1800 e 2019. Esse declínio linguístico não é apenas uma curiosidade estatística, mas um reflexo alarmante de como nossa cultura e consciência coletiva estão se afastando do ambiente natural que nos sustenta.
O psicólogo britânico Miles Richardson, da Universidade de Derby, conduziu a pesquisa utilizando o Google Books Ngram Viewer, ferramenta que permite rastrear a frequência de palavras em milhões de textos ao longo de mais de dois séculos. Ele selecionou cuidadosamente 28 palavras cotidianas associadas a elementos naturais — não termos técnicos ou nomes científicos de espécies, mas sim vocabulário que revela “o que as pessoas percebiam, valorizavam e escreviam sobre” em seu relacionamento diário com a natureza. O resultado foi contundente: o pico de declínio ocorreu em 1990, quando o uso dessas palavras já havia caído 60,6% em relação ao início do século 19.
A Extinção da Experiência: Quando Perdemos o Contato com o Natural
Richardson não parou na análise linguística. Ele desenvolveu um modelo matemático inovador para quantificar o que denominou “extinção da experiência” — o fenômeno pelo qual as gerações sucessivas têm cada vez menos vivências diretas com ambientes naturais. O modelo incorporou múltiplas variáveis: taxas de urbanização crescente, declínio da vida selvagem em áreas residenciais, tempo de tela em dispositivos eletrônicos e, crucialmente, a transmissão intergeracional da conexão com a natureza entre pais e filhos.
Os dados revelam uma espiral preocupante. Desde 2008, mais da metade da população mundial vive em áreas urbanas, e essa proporção só aumenta. Com menos exposição cotidiana a ambientes naturais, diminui a familiaridade com o mundo vivo. Estudos anteriores demonstram que a conexão dos pais com a natureza é o fator mais determinante para que as crianças desenvolvam essa proximidade. Quando os adultos não cultivam ou transmitem esse vínculo, as gerações seguintes nascem ainda mais distantes do meio ambiente, perpetuando o ciclo de desconexão.
O uso crescente de tecnologias digitais agravou dramaticamente essa situação. Desde a chegada da televisão nos anos 1950, passando pela era dos videogames e culminando com smartphones e internet móvel, o tempo ao ar livre foi sendo gradualmente substituído pelo tempo de tela. O Brasil é o quinto país com maior número de usuários de smartphones no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China, Indonésia e Índia. O problema não está nas tecnologias em si, mas no uso que fazemos delas e nas consequências sobre nossa saúde e a do planeta.
Solastalgia: A Dor de Perder o Ambiente Enquanto Permanecemos Nele
Paralelo à extinção da experiência surge outro conceito fundamental para compreender os impactos psicológicos da crise ambiental: a solastalgia. O termo foi cunhado em 2003 pelo filósofo e pesquisador ambiental australiano Glenn Albrecht, após observar moradores do Vale de Hunter, na Austrália, região devastada pela mineração intensiva de carvão. Albrecht percebeu que essas pessoas manifestavam sintomas emocionais semelhantes aos da nostalgia — tristeza, sensação de perda, deslocamento —, mas com uma diferença crucial: elas permaneciam em suas casas.
A palavra combina o latim solacium (conforto, consolo) com o sufixo grego -algia (dor), formando literalmente “dor pela perda do conforto”. Diferentemente da nostalgia, que pode ser amenizada com o retorno ao local de origem, a solastalgia articula um trauma crônico vivido no presente, causado pela transformação ou degradação do ambiente familiar. É a angústia de testemunhar a paisagem que você ama se deteriorar diante de seus olhos, sem poder fazer nada para detê-la.
Com a aceleração do aquecimento global e eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes, a solastalgia ganhou relevância científica e clínica crescente. Uma revisão sistemática publicada no BMJ Mental Health avaliou pesquisas com mais de 5 mil participantes de diversos países e confirmou associações significativas entre solastalgia e problemas de saúde mental como depressão, ansiedade, transtorno de estresse pós-traumático e somatização (surgimento ou agravamento de sintomas físicos desencadeados pela mente). As correlações entre solastalgia e depressão variaram de 0,27 a 0,53, sendo especialmente fortes em comunidades próximas a áreas de mineração a céu aberto.
Populações Vulneráveis e os Sintomas Invisíveis
Os grupos populacionais que vivem em territórios ambientalmente vulneráveis são os mais afetados pela solastalgia. Comunidades que dependem diretamente dos ecossistemas locais para subsistência, povos indígenas cujas identidades culturais estão entrelaçadas com a terra, moradores de regiões sujeitas a desastres climáticos recorrentes — todos esses segmentos experimentam níveis mais elevados de sofrimento psíquico relacionado às mudanças ambientais.
Os sintomas mais comuns incluem tristeza persistente, ansiedade crônica, sensação de abandono e impotência, além de manifestações depressivas. Segundo profissionais de psicologia, essas reações podem surgir de forma gradual e duradoura, especialmente em indivíduos que presenciam transformações drásticas como desmatamento, queimadas, enchentes ou poluição industrial. A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou em 2024 um relatório confirmando que eventos climáticos extremos e transformações ambientais estão diretamente ligados ao aumento de transtornos mentais globalmente.
O Que as Projeções Revelam Sobre o Futuro
O modelo matemático desenvolvido por Richardson permite simular diferentes cenários futuros. As projeções são desanimadoras: a extinção da experiência deve continuar pelo menos até 2050, com as futuras gerações cada vez menos conscientes da natureza devido à crescente urbanização e à falta de orientação parental sobre o mundo natural. No entanto, a partir de meados do século, há caminhos possíveis para reverter essa trajetória, desde que sejam implementadas mudanças transformadoras profundas.
Richardson testou diversas políticas e intervenções urbanas em seu modelo e ficou surpreso com a magnitude das mudanças necessárias para alterar o curso atual. Por exemplo, aumentar em 30% a área de espaços verdes urbanos biodiversos não é suficiente para elevar significativamente o engajamento popular com a natureza no curto prazo. Seria necessário combinar múltiplas estratégias simultâneas e sustentadas ao longo de décadas para produzir impacto mensurável.
Três Pilares para Reconstruir a Conexão
Apesar do cenário desafiador, o estudo identificou três estratégias que demonstraram efeitos duradouros quando implementadas de forma integrada:
Educação ambiental desde a primeira infância: Intervenções educacionais com crianças pequenas, especialmente aquelas que envolvem contato direto e regular com ambientes naturais, demonstraram efeitos duradouros que se estendem à vida adulta. Programas de educação ao ar livre, hortas escolares e excursões regulares a parques e reservas naturais são exemplos eficazes.
Ações de conservação e reverdecimento urbano: Iniciativas de preservação ambiental, incluindo a criação e manutenção de áreas verdes em contextos urbanos, aumentam o acesso físico à natureza e criam oportunidades para interações cotidianas com elementos naturais. Parques de bolso, corredores ecológicos, arborização de ruas e telhados verdes contribuem para essa reconexão.
Transmissão intergeracional consciente: O exemplo dos pais permanece fundamental para passar o apreço pelo planeta entre as gerações. Quando adultos cultivam ativamente sua própria conexão com a natureza e envolvem seus filhos em atividades ao ar livre, criam um legado de consciência ambiental que transcende gerações. Essa transmissão cultural é, segundo Richardson, tão importante quanto políticas públicas formais.
Por Que as Palavras Importam Tanto
A perda do vocabulário natural não é apenas sintoma da desconexão — ela também a retroalimenta. Quando não temos palavras para nomear elementos da natureza, tornamos invisível o que nos cerca e enfraquecemos nossa sensibilidade ecológica. A linguagem molda nossa percepção e nossa capacidade de valorizar o mundo. Sem vocabulário para descrever a diversidade de texturas, sons, formas e fenômenos naturais, empobrecemos nossa experiência e nossa capacidade de defender o que está sendo perdido.
Richardson enfatiza que “a conexão com a natureza é hoje reconhecida como uma das principais causas da crise ambiental. Ela também é vital para a nossa saúde mental. Une o bem-estar humano e o da natureza”. Essa ligação bidirecional significa que proteger o meio ambiente e cuidar da saúde mental humana não são objetivos separados, mas partes inseparáveis da mesma missão.
Uma Chamada à Ação Transformadora
Os dados são claros: a conexão humana com a natureza diminuiu mais de 60% nos últimos 220 anos, refletindo urbanização acelerada, perda de biodiversidade local e ruptura na transmissão cultural do apreço pelo mundo natural. Essa desconexão cobra seu preço em saúde mental, com o surgimento de condições como solastalgia, ecoansiedade e depressão relacionada a mudanças ambientais.
Mas a pesquisa de Richardson também oferece esperança. Mudanças transformadoras são possíveis se houver vontade política, social e individual para implementá-las. Reintroduzir as crianças ao contato regular com a natureza, transformar radicalmente ambientes urbanos em espaços mais verdes e biodivers os, e revitalizar a transmissão cultural da conexão com o mundo natural entre gerações são caminhos viáveis. Essas estratégias exigem comprometimento de longo prazo, mas são essenciais para reverter a espiral descendente em que nos encontramos.
A extinção das palavras sobre natureza é um sintoma de uma crise muito maior — mas também um lembrete poderoso de que a linguagem, a cultura e a consciência ambiental estão profundamente entrelaçadas. Reconquistar o vocabulário perdido significa reconquistar nossa própria capacidade de ver, valorizar e proteger o mundo vivo que nos sustenta.
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